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Breves Notas Sobre o Personalismo de Emmanuel Mounier

A Renascença identifica-se com o fim da Idade Média e início da Moderna. Para a história da humanidade, isso representa um marco significativo na mudança de perspectiva em quase todas as áreas. A filosofia da antiguidade clássica torna-se fonte de inspiração para a Renascença e modifica significativamente a noção antropológica do período. A revalorização da antiguidade clássica, que está na essência das características do movimento renascentista, traz consigo o Humanismo.

Segundo o filósofo e jurista Miguel Reale, o movimento renascentista serviu de arcabouço para o surgimento de novas idéias que culminaram na ocorrência de uma mudança substancial na Ciência e na Filosofia, a partir da perspectiva do Humanismo.

O Humanismo, principal ideologia da época, coloca o homem no centro da preocupação da Ciência e da Filosofia. Ele retrata principalmente a idéia de que o homem deve usar a razão e basear-se nas evidências empíricas para chegar às suas conclusões sobre tudo. O raciocínio lógico é fundamental dentro da concepção humanista. O Humanismo coloca o foco prioritariamente no homem, nos aspectos de sua constituição em todos os níveis e no modo como ele se insere dentro dos contextos e espaços do qual faz parte. Muda-se o foco da Teologia, que vigorou durante toda a Idade Média, para a Antropologia. O homem, e não mais Deus, passa a ser o centro da nova perspectiva filosófica da época, puramente antropocentrista e racionalista. Problemas ligados ao ser, de ordem metafísica, que impossibilitavam a construção de uma teoria do conhecimento, dá espaço para métodos de investigação de análises e sínteses com base empírica. O pensamento típico do homem medieval, para quem a religião ainda estava no cerne de tudo de forma absoluta, dá lugar na Idade Moderna a questionamentos de dogmas religiosos até então incontestáveis. Lançam-se as bases para o crescimento científico e tecnológico que se sucederia a contar de então.

A partir da Renascença, o homem se afasta do feudalismo rumo ao capitalismo, o que implicou transformações consideráveis no modo como o homem era visto dentro do sistema político e econômico. Idéias sobre liberdade e republicanismo enfraqueceram os feudos. O homem passava para a condição de agente necessário da movimentação de riqueza, produzindo e consumindo, girando capital e trabalho, o que é a base do sistema capitalista.

Percebe-se, portanto, que todas as concepções que giram em torno das principais características de sociedade, economia, cultura, política, filosofia, arte, ciência e religião sofrem uma ruptura.
Essa nova maneira de enxergar o mundo, o homem, Deus e a realidade dá início ao Racionalismo moderno, com Descartes abrindo o caminho decisivo para o nascimento de uma nova Ciência e Filosofia.

Descartes identifica o homem como uma “coisa que pensa” e capaz de existir pela própria definição do ato de pensar; um ser racional, intelectual, apto a duvidar e construir idéias lógicas com clareza e conhecimento. Essa concepção antropológica do homem possibilita uma nova construção da Ciência. O método científico e de apreensão de conhecimento passa a ser fundamentado na observação dos objetos e, consequentemente, na razão humana. É o saber construído com base empírica, centralizado na racionalidade do homem, e que desvincula por completo a necessidade de conhecimento da pessoa de Deus.
Foi a construção da concepção moderna do homem no centro de tudo que possibilitou o surgimento de correntes filosóficas voltadas para a valorização do homem enquanto ser detentor de dignidade e personalidade. Dentre elas, o Personalismo merece destaque.

Embora o movimento filosófico personalista tenha surgido na França, por volta de 1930, em torno de uma revista denominada "Esprit" coordenada por Emmanuel Mounier e tendo como base o cristianismo, o existencialismo e o socialismo, é possível identificar aspectos personalistas desde a mais remota antiguidade da civilização ocidental.

O Personalismo é, por definição e, antes de tudo, um humanismo, porque atribui ao ser humano dignidade, racionalidade e liberdade. Para o Personalismo de Emmanuel Mounier, o homem é um ser dotado de imanência e transcendência e esses dois aspectos não podem ser separados. Logo, o homem é um ser indivisível, livre, criativo, integral, espiritual, indissociável de seus múltiplos elementos e características, impossível de ser separado de si mesmo e descontextualizado para ser observado; um ser que se manifesta de diversas maneiras e só pode ser compreendido na medida em que seja possível analisar todas as suas nuances de cunho emocional, racional e espiritual. É impossível, para o Personalismo, definir o homem analisando-o mediante a observação que se faça de um único aspecto de suas mais variadas dimensões e manifestações. Qualquer tentativa de enquadrar e identificar o homem tomando por base uma característica isolada da sua constituição complexa e cheia de variáveis é incompleta e reducionista. O homem deve ser enxergado e considerado na sua universalidade, na sua integralidade, na concepção mais ampla possível da definição da sua essência e natureza, porque só a visão do todo do homem corresponderia à verdade sobre quem ele é de fato. Cada ser humano é um universo pessoal, um ente vivo em plena atividade, completamente livre, e constrói-se de dentro para fora, e não de fora para dentro, num ambiente de múltiplas capacidades e de diversidade na maneira de manifestar-se.

O Personalismo busca fazer distinção entre o homem-indivíduo e o homem-pessoa e, a partir dessa distinção, diferenciar-se do Individualismo, que enxerga o homem como um ser voltado para si mesmo, egoístico, autocentrado e isolado da sociedade. O Personalismo busca definir o homem a partir do outro, do convívio social, da análise que o outro faz de seus aspectos constitutivos, da integração do homem ao meio, da comunicação desse homem com seus semelhantes, do homem como um ser ativo e não passivo dentro da sociedade da qual faz parte. Sob o ponto de vista da sociedade da época, o enfoque que o Personalismo dá à ação humana, à iniciativa, à responsabilidade, à construção ativa da sua história, à participação na comunidade da qual faz parte e à vida espiritual do homem foram uma proposta revolucionária num período em que a França passava por problemas morais e o homem se via como um ser entregue ao anonimato.

A crítica à sociedade capitalista consiste em mais uma diferença entre Personalismo e Individualismo. Para os personalistas, o capitalismo é fruto do individualismo exacerbado, do homem voltado exclusivamente para si mesmo. O Individualismo, portanto, estaria ligado à economia de mercado, aonde ser não é tão importante quanto ter, enquanto para o Personalismo o homem se define não pelo que tem, mas pelo que é.

O Personalismo trabalha, ainda, a idéia de que cada ser humano tem valor em si mesmo e, por isso, tem direitos subjetivos que merecem proteção legal. Surge daí o enfoque à dignidade da pessoa humana e à moral. Para o Personalismo, os atributos da dignidade e da moral estão acima de qualquer outro e não podem ser violados. A dimensão do ser humano não é apenas imanente, mas transcendente, o que implica dizer que, na escala de valores do homem, há valores de natureza subjetiva e que precisam ser protegidos. Vale lembrar que, justamente pelo enfoque que o Personalismo dá à dignidade, honra, moral, ética, valores pessoais e de natureza subjetiva do homem, essa corrente de pensamento oferece enorme contribuição para a construção legal e doutrinária do Direito, notadamente o brasileiro, que adota uma concepção totalmente personalista ao dispor dos Direitos Individuais e Sociais na Constituição Brasileira e dos Direitos da Personalidade no Código Civil Brasileiro, além de influenciar diretamente quase todo o ordenamento jurídico nacional.

No Personalismo o homem é valorizado e respeitado, protegido e definido pela sua dignidade. No Individualismo, o homem é diminuído de sua dignidade e escravizado pelo egoísmo.

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